sexta-feira, 18 de maio de 2007

Uma Arte Chinesa

Algumas artes advindas do Oriente sempre suscitaram no imaginário Ocidental uma escala imprecisa de minimalismo metódico, disciplinar, cheio de simplicidade e profundidade. Uma verdadeira aura de sutileza encontrada e reverenciada na estética de cerimônias como as do chá, arranjos de flores ou mesmo malabarismos sobre-humanos de circo. No entanto, em algumas artes que nada possuem de beleza natural e, diga-se de passagem, muito menos se constituem do que se poderia chamar de admiráveis, o requinte Oriental é sobretudo cruel. E a tortura chinesa é uma delas. Possui, inclusive, expressão cunhada e cristalizada na língua: "lingchi" numa grafia latina aproximada e guardada a devida tonalidade própria e característica da língua. Os ideogramas utilizados para marcar a forma de execução alude a uma morte levada ao extremo da dor e, sobretudo, demorada. Ainda quanto ao requinte tipicamente chinês, não literalmente, a tradução seria algo como "subindo a montanha devagar". Estava oficialmente destinada somente aos casos que necessitassem de servir como execução-modelo, uma espécie de sobreaviso aos que ainda sequer pensassem em cometer crimes como os de traição ou parricídio, por exemplo. E se tal justificativa remete às imagens de Tiradentes ou Virgulino, ambos feitos ícones de modelo a não ser seguido, ao terem os corpos expostos publicamente, na China, como marcadamente se tem redescoberto ainda hoje, as coisas tendem a superar até a própria anormalidade; eles também possuem seus carrascos que nada devem ao pior dos torturadores ocidentais.



Pedaços da vítima eram arrancados com a preocupação de não afetarem pontos vitais a fim de prolongar a show de horror.


No Ocidente, o martírio em questão foi muitas vezes referido pela alcunha de "Morte Por Infinitos Cortes", sendo "infinitos", na verdade, quase sempre traduzido por "milhares"; no entanto, o verbete para "milhares" se constitui de uma usual metáfora hiperbólica até hoje comum no Mandarim e suas variações. Ou mesmo em outras línguas que sofreram sua influência como o Japonês. O castigo também foi registrado pela primeira vez de forma oficial no Código de Leis da Disnatia Liao - precedida pela famosa Dinastia Tang, época onde estão celebrados alguns dos que são considerados maiores poetas chineses e quando ganhou grande vigor o Budismo tido como tipicamente chinês. O cerimonial não era dispensado nos casos de lingchi; a vítima quase sempre era dopada fosse por ervas sobre as quais apenas os torturadores oficiais da casa do imperador tinham conhecimento, fosse pelo uso de ópio já no século XX (também "apenas" oficialmente, a punição foi abolida em 1905). Porém, em ambos os casos, a razão da dosagem era manter a vítima consciente ou semi-consciente pelo maior tempo possível. Sensível preocupação esta que repercutia na delicada escolha das partes a serem rasgadas: braços, pernas, mãos. Pelo mesmo motivo, comumente retirava-se toda a pele das costas ou se faziam buracos no tórax para a retirada de costelas ou facadas diretamente nos órgãos internos da vítima.

Fuzhúli, um dos últimos chineses a sofrerem a cruel tortura chinesa.


Condenado jaz esquartejado após a tortura (fotografia com direitos autorais da Universidade de Cambridge).


Os únicos registros fotográficos são de autorias controversas, sendo esta uma confusão típica dos últimos anos da Era Vitoriana, época em que há um verdadeiro surto de redescoberta do Oriente por parte da Europa - notadamente o Reino Unido no ápice do neocolonialismo, fomento da Revolução Industrial e quando a presença de embaixadores ingleses, expansionistas e aventureiros de todas as partes do Velho Mundo buscavam alcançar as abas do globo ainda inóspitas, mal tocadas pelas Grandes Navegações. São da mesma era homens como Sir Henry Norman, Sir Richard Burton ou o Doutor Livingstone. Para se ter uma vaga idéia dos problemas de datação tardia e de conturbadas atribuições de descobertas geográficas na Era Vitoriana, a nascente do Rio Nilo só foi tida como desvendada por John Speke em 1858 quando, então, dá ao lago o nome de Vitória, apesar de especulações e até algumas evidências apontarem a real descoberta a Sir Richard Burton. Ainda, mais tarde, acaba-se que, na verdade, comerciantes árabes no Século X já haviam mapeado (como o famoso desenho árabe conhecido por Al Adrisi) o mesmo lago que viria a receber seu nome por homenagem à Rainha da Grã-Bretanha.

Apesar de toda a confusão quanto a possíveis farsas na autoria das fotografias preservadas, alguns registros do
lingchi ficaram especialmente marcados a partir de fotos ou mesmo quando a execução pública era presenciada por ocidentais. Um dos casos mais evidentes da atração - muitas vezes mórbidas, pelo pitoresco Oriental, é o do escritor francês Georges Bataille. Seus livros de muito serviram posteriormente inclusive a estudos da psiquê do êxtase. Chegou a fundar uma sociedade secreta intitulada Acéphale no auge do seu fascínio por sacrifícios humanos. Bataille, ao ver as imagens da execução do chinês Fuzhúli, delira e chega a excitar-se (donde em quais acepções do termo fica a cargo do especialistas da área, e se possível o for) perante a expressões de quase indiferença por parte da vítima, apesar da tortura sofrida- ainda que muito provavelmente se trate apenas de efeito resultante das drogas que lhe foram aplicadas para suportar a mutilação.

A expressão do condenado remota ao êxtase em tons praticamente divinos à percepção de Bataille, ainda que para a maioria fosse esperada uma reação que exprimisse algo no mínimo próximo à repulsa.

As formas variadas de lingchi por arquivos chineses ou britânicos também marcam esquartejamentos praticados com a vítima já morta ou insconsciente. Ou, por vezes, a decapitação, donde separar cabeça e corpo se faz punição registrada desde os primeiros códigos de leis tanto da História da China quanto do Japão, neste último mais notadamente após o advento sacrificial e de rígida cerimonialidade dos Samurais e em massacres como o de Nanjing por parte dos japoneses na prória China.





O esquartejamento post-mortem também tem suas razões chinesas de ser: assim como o respeito prestado aos mortos é uma marca Oriental alvo de muita admiração, sua humilhação possui mesma força e simbologia. Por exemplo, ainda hoje se emprega uma antiga prática em certas áreas da China, onde o cadáver de um homem ou mulher que viveu solteiro e sem estirpe, por pedido da própria família é exumado para ser enterrado ao lado de um companheiro encontrado mesmo que após a morte. Há pouco mais de dois anos atrás, podia-se encontrar na imprensa européia a contestação abismada de uma família que, preocupada com um sobrinho que não casara e tampouco tivera namoradas, resolveu "casá-lo", já morto, com uma outra solitária defunta da vizinhaça. Decidiu-se que o corpo desta seria levado para ser novamente enterrada, mas desta vez ao lado de quem havia então sido escolhido para fazer-lhe companhia pelo resto da eternidade.

Assim como no Século XVI ou mais tarde no final do Século XIX, vê-se hoje, uma redescoberta dos chineses, assim como aconteceu com os japoneses no pós-guerra. A China é de novo a bola da vez, ressurgindo incomensurável no plano econômico e cultural, vindo desta vez quando nem se sabe se realmente fomos nós até lá. Nem sequer se realmente estão aqui. Em visão atual da macro-história, cabe inclusive perguntar curiosamente como se dará uma possível substituição da liderança mundial dos Estados Unidos por parte da China. Ou, pelo menos, como serão recebidos. Ainda, em tempo, que uma coisa se aprenda de uma vez: certamente, nem sempre são de detalhes imperceptíveis que se fazem as maestrias do povo amarelo.

- Henrique Silva
(rahula.gauthama@hotmail.com)

6 comentários:

Anônimo disse...

E é de direito do ser humano morrer, né?

Anônimo disse...

Fiquei pensando no porquê da nossa língua carregar a expressão "tortura chinesa" se referindo à tortura psicológica. Houve uma mudança de sentido na nossa língua, ou tem alguma outra história por trás disso?

Quanto às caras de prazer da vítimas, acredito que se dêem realmente pelos entorpecentes. Todo ser humano reage a uma dor, não se trata de uma questão cultural.

Um beijo, Henrique, muito bem escrito!

Henrique Silva disse...

Oi Ludmila... na nossa língua, o que tenho conhecimento como sendo dos primeiros usos da "tortura chinesa" foi a escolha da expressão pelo DOI e pelo CODI na ditadura...

Inclusive, um irmão meu por menos de 40 minutos não passou por uma! No Rio, idos da nossa "época de ouro", meu pai jogou os livros fora e o DOI entrou em revista neste intervalo de menos de uma hora depois...

Prática tão velha quanto a humanidade, não faltariam os nossos carrascos tupiniquins, né?

Vide Caxias... ou outros que fecharam os olhos a crianças e até mulheres grávidas cruelmente assassinadas e vítimas dos mais variados crimes sexuais na Guerra do Paraguai, por exemplo... a mesma que ainda hoje é exaltada por grandiosíssimos generais milicos como heróica.

Beijos!

Anônimo disse...

Excelente artigo. Obrigado.

Anônimo disse...

Verdade é que a nossa história é feita de sangue também. Culturalmente somos herdeiros de negros massacrados em senzalas, índios dizimados e portugueses bandidos aportados com privilégio de repordutores.
E não podemos esquecer do canibalismo chinês depois da grande recessão do começo do século passado.
Ótimo artigo. Parabéns

Anônimo disse...

gente ignorante...